top of page
  • 3 min de leitura

Marcílio Godoi

Não seria de se estranhar se na capa deste livro viesse uma tarja: “Poemas baseados em fatos reais”, para que ficasse decretado de partida o poder destes versos em nos expor nosso mons­truoso pecado original, a escravidão. Mas com Francis Ponge, que se reivindica “o poeta das coisas”, não o poeta do eu, aprendemos que a linguagem serve pra descrever, não para conven­cer ideologicamente ou provocar eventuais sen­timentalidades. Destes factuais novos Poemas negros, para citar a não pacificadora obra que o alagoano da serra da Barriga, Jorge de Lima, escreveu em 1947, partimos para um embate.

“Um verbo” já nos dá logo no primeiro poe­ma o tom do jogo que se inicia, o da linguagem provocativa a revolver com seu revólver não um incômodo, mas a ação de fustigar a nossa mais exposta chaga: racista. A ancestralidade surge aos poucos, mas definitiva, anunciando o poder de destruição que a linguagem possui. Incrível como pode-se imprimir com tanta elegância e ritmo um grito de guerra necessário e inquietante com “ga­ses paralisantes/silêncios mais pesados que o ar”. Percebemos a partir daí o impacto surdo e cor­tante do que já não se situa mais apenas na pele, esta cicatriz ulcerada encontra-se medularmente posicionada: “onde o chumbo não penetra/onde o aço não vai.”, no poema que dá título à coletânea.

Em “Dores e moendas”, soa-nos um canto dramático ao fundo, em que as ondas venci­das pelos navios negreiros parecem se chocar com a pós-dureza do engenho, ultrapassando em muito a questão convival da casa-grande com a senzala, vindo nos estapear o rosto num triângulo de açoites roendo, moendo, gemen­do Bahia, Minas e Pernambuco. A imagem do silencio “empedrado” no abafamento dos poe­mas soca-nos sequencialmente mais uma vez o estômago e se reprisa em alguns poemas da seção “Vozes”, como um mapa da violência, do emudecimento e do apagamento oficiais.

Na segunda parte, “Figuras” se erguem pela retomada da voz negra de Rosa Parks, Nina Si­mone, Madame Satã, entre outras personagens da diáspora negra, com destaque para o par de sonetos dedicados a Audálio Dantas.

A seção “Beco da Esperança” traz toda a circunstância absurda de poemas que parecem tirados de notícias de jornal. Na genial estro­fe de “Néons”, em que percebemos o ritmo dos corpos caindo na progressão métrica dos ver­sos, na inversão de acusações em “Boletim de ocorrência” ou ainda no premonitório “Congo­lês”, acode-nos a atualidade infernal dos poe­mas, em que as personagens operam em nossa mente um desfile de corpos marcados por uma condenação expressa à morte.

Na seção “Batuque”, o poeta parece dar­-nos uma instável resposta ao desesperador capítulo anterior e os poemas se avolumam em outra sonoridade, mais luminosa, evocando reverencialmente seu atavismo em versos po­tentes e nas figuras dos orixás que se misturam graficamente à iconografia baiana, católica, clamando numa espécie de oração às deusas do sol africano.

No andradiano “Oxóssi na cidade”, o ma­chado de Machado, com todos os duplos sen­tidos possíveis, amplia-se para o belíssimo “A caça de Oxóssi”, numa perquirição dramatizada, amostra em cápsula poética de todo o tomo, em que o caçador é também caça, flecha e mira, nos diversos planos da nossa mais bela e cruel realidade. “Batuque” e “Vinte de novembro” lembram, em seu ritmo impecável, cantos de guerra e evocação espiritual que, sobretudo na leitura em voz alta, parecem surgir como uma melodia introdutória para o retumbante fe­chamento com a ode triunfal “Liberata”, sobre a mulher escravizada que conquistou e recon­quistou sua liberdade e a dos filhos ao final do século XVIII na região de Porto Belo, SC.

Cicatrizes abre o catálogo da editora Balaio com altíssimo teor literário e o mais urgente e oportuno olhar histórico, por certo. Mas ante­riormente a isso, esta obra de Carlos Machado insere-se numa categoria ainda mais alta e rara das publicações, aquelas que colocam força criativa e carga reflexiva a serviço da insurrei­ção de nossa humanidade.

Marcílio Godoi é arquiteto, jornalista e escritor. "Úlcera" integra os paratextos do volume Cicatrizes, de Carlos Machado.

  • 2 min de leitura

Intertextualidade


Sobre o fenômeno da produção literária nos finais do século XX e início

deste século, em suas transformações e paradigmas, a reflexão da crítica Leyla

Perrone-Moysés, no ensaio “Metaficção e intertextualidade”, oferece

interessante percurso para compreender a manifestação estética na cultura

contemporânea e a reciclagem conceitual que impacta a literatura.

A literatura autorreflexiva e especialmente o conceito de metaliteratura –

que surgiu no final do século XX – tratam de uma língua que fala de outra

língua. Para a teórica canadense Linda Hutcheon, aplica-se às produções que

tecem comentários sobre “sua própria narrativa e/ou sobre sua identidade

linguística”.

Na reflexão de Perrone-Moisés, ainda que esteja presente ao longo da

produção literária desde Cervantes, a intertextualidade manifesta-se com mais

vigor a partir do final do século XX, o que coincide com uma renovada crise do

sujeito. Ou seja, o real deixa de ser a referência essencial para dar lugar a uma

produção que toma a própria literatura como objeto de leitura de mundo. Isso

se dá, agora, por um viés que tem a memória e seus modos sincrônicos de

apreensão como orientação.

O escritor catalão Enrique Vila-Matas é o exemplo eleito pela crítica para

analisar a metaliteratura na apropriação que ela faz, na atualidade, da

produção literária anterior. A abundância de referências ao passado tem como

ponto de partida o estatuto de leitor. Entre os inúmeros títulos do autor,

Bartleby e companhia é emblemático, segundo Perrone-Moisés. Ao misturar

ensaio e ficção, tomando a ilustre personagem de Melville e sua fórmula

“preferiria não”, Vila-Matas apresenta extenso cortejo de autores, reais e

fictícios, em seus questionamentos sobre o fazer literário e, tanta vez, da

impossibilidade que o acompanha.

“Já que todas as ilusões de uma totalidade representável estão perdidas,

é preciso reinventar nossos próprios modos de representação”, argumenta Vila

Matas, em citação mobilizada pela crítica. Da epifania à afonia, Vila-Matas

aponta o que nomeia decadência no entendimento da literatura. No entanto,

sua crítica é bem-humorada e não assinala o fim da literatura ou dos leitores.

No ensaio, a autora chama a atenção para a estratégia recente da

presença de autores, com o nome próprio, em obras ficcionais. Segundo, a ela

capacidade de “autoderivação” da literatura, no revirar continuado de autores,

obras ou autorreferências permitiria sua constante reinvenção e vida longa.


Referências

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Metaficção e intertextualidade. In: PERRONE-MOISÉS,

Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras,

2016. p. 113-124.


  • 2 min de leitura

Espetacularização?


O indecidível que paira sobre a crescente produção literária autoficcional remete-nos, em princípio, à fabulação desmedida e à espetacularização do

sujeito contemporâneo. No exame desse novo fenômeno e da recorrência ao termo autoficção para nomear um número extraordinário de produções literárias na contemporaneidade, é válido cumprir um breve percurso e estabelecer alguns marcos históricos.

As escritas de si, na acepção de produção em primeira pessoa que

performa a noção de sujeito, remetem a longínquas tradições do Ocidente.

Nesse sentido, podemos tomar Agostinho como autor da primeira obra

biográfica – As Confissões –, no século IV, apesar das formas da

correspondência já terem registros históricos desde os séculos I e II. Nas

cartas, o conhecimento de si é o motor do registro, mas, para além da

constituição de um sujeito, identifica-se o propósito do ato de mostrar-se: “[...] a

carta, que trabalha para a subjetivação do discurso, constitui ao mesmo tempo

uma objetivação da alma. Ela é uma maneira de se oferecer ao olhar do outro”,

afirma a pesquisadora Diana Klinger.

A partir do Renascimento, a perspectiva é diversa e a escrita de si adota

como eixo um sujeito que descarta a submissão a modelos preestabelecidos.

Montaigne e os ensaios produzidos no século XVI são uma referência

emblemática dessa manifestação, mas já trazem em seu projeto um indivíduo

que se autoriza a valorizar a experiência pessoal como pressuposto para a

análise de diferentes temas.

Na modernidade, o sujeito em crise adota como orientação uma

consciência reflexiva. O deslocamento desse sujeito tem uma de suas

primeiras referências no questionamento de Nietzsche, no século XVIII, ao

cogito cartesiano, à falsa instância do pensar e sua falibilidade enquanto

pressuposto de verdade. Ao retomar essa reflexão, a formulação de Foucault

sobre a verdade a apresenta como elemento constitutivo de um jogo histórico,

que se relaciona tanto com práticas subjetivas como com mecanismos de

poder.

O sujeito que chega ao século XX traz, assim, na bagagem, uma crise

moral e social e um eu múltiplo a conjugar dinâmicas de forças contraditórias. É

esse sujeito cindido que, na expressão estética, depara-se com nova crise,

agora da representação, e com a ruptura da autoridade autoral. Foucault e

Barthes assinalaram, nos anos estruturalistas de 1960 e 1970, essa perda de

nitidez e espessura da figura autoral. A dessacralização do autor dá lugar à

linguagem, à função autor, a criações intervalares, em última instância, a uma

fratura.

Nos finais do século passado e inícios do século XXI, a reivindicação de

lugares de fala e do nome próprio engendram um novo projeto: a autoficção.

Em resposta a Philippe Lejeune e a seu quadro-síntese sobre possibilidades

autobiográficas – que combina pacto autobiográfico com a presença ou não do

nome do autor e deixa uma casa vazia - na publicação O pacto autobiográfico,

de 1973, Serge Doubrovsky responde, no romance Fils, de 1977, com a

criação do neologismo. A partir de então, uma horda de autores emergiu de

seus laboratórios de artífices para reivindicar novo contrato de subjetividade.

Na literatura, essa autorreferência da primeira pessoa, sem compromisso com

a cronologia, a linearidade e a verificabilidade, assinala, segundo Diana Klinger,

em Escritas de si, escritas do outro (2007), novas perspectivas de

questionamento da identidade, caracterizadas não só pela crítica do sujeito

e pelo proposital embaralhamento da verdade, mas especialmente pela cultura

da espetacularização.


Referências

KLINGER, D. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada

etnográfica. 3. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização de Jovita

Maria Gerheim Noronha. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

bottom of page