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Carlos Machado


No próximo dia 22/03, estou lançando Cais da memória, nova coletânea de poemas, a primeira após o lançamento de Cicatrizes (Balaio, 2023). Quem consultar as fichas bibliográficas dessas duas coletâneas certamente pensará que esse novo livro foi escrito depois do anterior. Não é bem assim. Conto aqui a história meio tortuosa desse livro.

Na verdade, Cais da memória estava pronto em 2018, no mesmo momento em que publiquei A mulher de Ló. Os dois originais chegaram juntos à Editora Patuá. Decidimos então que a mulher bíblica deveria sair primeiro. Cais da memória ficaria para o ano seguinte. Contudo, por uma série de percalços, não saiu em 2019 e, em 2020, foi atropelado pela pandemia.

Os horrores da pandemia não vieram sozinhos. Jogando a favor desses horrores, como se sabe, havia o desastroso governo daquele cujo nome não vou repetir aqui. O mundo editorial, assim como numerosos setores do país, ficou completamente desarticulado. De minha parte, confesso que também perdi o interesse em publicar livros. Isso durou até o final de 2022, quando André Nigri, amigo e ex-colega jornalista, me pediu algo para publicar na Balaio, uma nova editora paulistana com a qual ele estava trabalhando. Mostrei a ele algumas coisas de meu baú de inéditos. Ele gostou de uma seleção de poemas focados em questões da negritude.

A partir daí, ele coordenou a edição, discutiu comigo a imagem da capa e sugeriu o título, Cicatrizes. O livro saiu em abril de 2023. Somente um ano e meio depois disso, voltei a fazer contato com a Editora Patuá e resolvemos tirar do limbo os originais de Cais da memória, livro que sai a público neste março/2025. Uma pergunta que sempre me fazem: existe algum parentesco de conteúdo entre os dois livros que chegaram juntos à mesa do editor? Acredito que sempre há algum vínculo genético entre textos produzidos pelo mesmo autor. Mas Cicatrizes é focado no tema da negritude. Já Cais da memória traz poemas voltados para uma extensa variedade de assuntos. O título vem de uma seção chamada “Pretérito imperfeito”, na qual estão reunidos poemas que partem de memórias pessoais do autor. Destaco, na edição, o prefácio escrito pelo poeta paulistano Ruy Proença. E, por fim, permito-me a impertinência de convidar os amigos a embarcarem comigo nesse Cais da memória, com todas as cicatrizes do passado que ele possa conter.

Valéria Ignácio


Será que o leitor que não fala outro idioma além do português se interessaria em pensar sobre a tarefa da tradução ou o que acontece antes que possa ser materializado para seu deleite um texto originalmente escrito em russo, alemão, francês...?

Prática cultural que ultrapassa a mobilização de idiomas, a tradução contemporânea tem estimulado muitas reflexões e novas problematizações vêm surgindo desde a segunda metade do século passado, até quando a tradução era considerada uma atividade acessória e, no senso comum, sem maior valor. Desde então, o tema não deixa de provocar polêmicas, dando origem a uma série de questões sobre a validade ou adequação de procedimentos no processo de interpretar uma mensagem de uma língua de saída para uma língua de chegada. A tarefa torna-se ainda mais complexa e exigente se o objeto da tradução é um texto literário.

Desde que comecei a fazer o Curso de Formação de Tradutores, na Casa Guilherme de Almeida, em abril deste ano, muito do que, antes, me chamava a atenção superficialmente ganhou outra dimensão, especialmente no que diz respeito a equivalências formais e informais. O tema é vasto e desperta divergências. Entre os que defendem a correspondência estrita e aqueles que são simpáticos a limites opostos, que beiram a adaptação, por enquanto, meus argumentos apontam para uma relação dinâmica que privilegie a negociação não apenas de sentidos, mas também da forma.

Não sou tradutora, mas me dedico a exercícios e pesquisas nessa área, buscando, em autores de prestígio, pontos de apoio. É mais especificamente deles que trata este breve ensaio, sem pretender de forma alguma esgotar o elenco, mas propor algumas possibilidades de entendimento sobre a história da tradução.

Já no século XIX, o teólogo, filólogo e filósofo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) propunha substituir a explicação pela compreensão do discurso estranho, nativo ou estrangeiro, por meio de uma atitude crítica empenhada em reconhecer, nos textos, aspectos da construção na língua e, a partir dessa aproximação, reformular o ato criador, dissipando mal-entendidos. Para ele, na arena de tradução de uma língua estrangeira, o desafio do tradutor se amplia, pois confrontam-se dois indivíduos, o que vive a própria língua e a transforma, e aquele que pretende penetrar a “expressão viva” e a dimensão histórica da enunciação do outro. O desafio da transmissão é tanto maior na medida em que a língua de origem é estrangeira e distante.

Roman Jakobson (1896-1982) ocupa lugar de destaque nessa constelação. Considerado um dos mais brilhantes linguistas do século XX, esse estudioso russo dedicou-se especialmente às funções da linguagem, diferenças e vizinhanças entre as formas de comunicação e as relações dos textos com os contextos. Para ele, a tradução se daria em três níveis: uma reformulação dentro da língua, a interpretação dos signos por meio de outra língua e a aquela que se vale de signos não verbais.

Walter Benjamin (1892-1940) é outro pensador, também alemão, que merece atenção no tratamento que dá aos modos de significação das coreografias móveis do texto, ao considerar, em um prefácio às próprias traduções que fez de Baudelaire (e que se tornou um clássico), a intencionalidade como elemento chave em oposição à ação servil do tradutor.

Na atualização dos pressupostos hermenêuticos, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) explora a explicação da interpretação, de forma a demarcar manifestações ideológicas no campo sociocultural. No seu entendimento, é imprescindível valorizar as expressões do imaginário, que muitas vezes está diretamente relacionado à representação política de grupos sociais. Por isso, na apreensão de acontecimentos e sentidos narrados, seria necessário investigar a construção discursiva do texto em sua recriação da realidade, o que exige um trabalho de mediação simbólica.

Também merece destaque o crítico literário franco-americano George Steiner (1929-2020), especialmente pela contribuição da obra Depois de Babel – Questões de linguagem e tradução (2005), originalmente publicada em 1975, essencial e sofisticada pesquisa sobre o fenômeno da tradução, da linguagem e da literatura, que atualiza muitas das discussões sobre a tradução que tiveram lugar no século XX. Ele assinala a importância capital da constante sujeição da língua a transformações como fator determinante de dificuldades. “A língua comum está, literalmente a cada momento, sujeita à mudança”, afirma, apontando diferentes níveis de alterações, desde o surgimento de palavras, convenções gramaticais, inovações lexicais, modificação das dimensões e intensidades de ditos e não-ditos etc., num espelhamento da própria experiência humana.

No que o intelectual chama “mapeamentos do mundo”, por meio de expressões simbólicas, analogias, alusões, contrapontos irônicos e metáforas, residem, adverte ele, incógnitas que podem ser equiparadas à realidade mesma. Por isso, a capacidade de compreensão do tradutor deve, além do conhecimento fundamentado da língua de origem do texto a ser traduzido, ser acompanhada de estudo e percepção literários sobre o autor em questão, sem deixar de lado, entretanto, a exigência fundamental de dominar o contexto espacial e temporal de um texto.

Steiner aponta, como um dos pressupostos para a tarefa tradutória, que o desvendamento da intencionalidade do autor de origem é o “coração do processo interpretativo”. Essa premissa orienta muitos dos tradutores pós-modernos, que tomam como referência, em um trabalho de tradução, aspectos sociológicos, antropológicos, políticos, éticos, históricos, filosóficos e econômicos presentes no texto e no contexto de produção da obra.

Voltaremos ao assunto, na medida em que os estudos avançarem e, seguramente, haverá mais a compartilhar com os leitores do BalaioBlog. Por ora, gostaria de sugerir um par de reflexões. Ao ler uma tradução, lemos um texto equivalente ao original ou uma recriação? Como o tradutor justifica suas escolhas, da tradução literal à transformação de um texto original, num território de significados não estáveis?



Carlos Machado


Conheci há pouco tempo uma série de livros estadunidenses chamada The Best American Poetry, publicada anualmente desde 1988. Criado e editado pelo poeta e crítico literário David Lehman, esse anuário apresenta em cada edição 75 poemas de 75 poetas. Os textos são extraídos das revistas literárias americanas que circulam durante o ano de referência. A rigor, cada edição refere-se mais exatamente ao calendário poético do período anterior ao que aparece na capa. Cada poema vem com o nome do autor e o título da publicação de onde foi tirado. A sequência dos textos obedece à ordem alfabética dos nomes dos poetas. Seriam, portanto, os melhores poemas do ano, sem classificação. No final do volume, há uma seção com a lista completa das revistas que publicaram aquelas composições pela primeira vez.

Desde o número inicial, o editor convida um poeta ou crítico conhecido, que realiza a seleção dos poemas e ainda escreve um longo ensaio a respeito daquela colheita anual. Assim, o volume The Best American Poetry 1988, o primeiro da série, teve como editor convidado o poeta John Ashbery (1927-2017), considerado um dos grandes nomes da lírica americana no século XX. O anuário de 1992 contou com Charles Simic (1938-2023), ganhador do prêmio Pulitzer em 1990 e, depois, Poeta Laureado dos Estados Unidos em 2007. Na seleção de 1993, a convidada foi Louise Glück, que viria a arrebatar o Prêmio Nobel de 2020.

Em 1998, o celebrado crítico Harold Bloom (1930-2019) assumiu o papel de editor convidado para uma edição muito especial. Ele coordenou o volume The Best of The Best American Poetry 1988-1997. Bloom pegou todas as edições publicadas nos primeiros dez anos e delas selecionou os 75 melhores poemas, segundo seu critério. Em 2013 houve outra edição The Best of The Best, nesse caso para comemorar os 25 anos do periódico. Portanto, a publicação de David Lehman repousa sobre uma ideia excelente e ele acredita que o anuário oferece uma indicação confiável sobre a qualidade e a diversidade do que andam escrevendo os poetas nos Estados Unidos, ano após ano. Aliás, no prefácio à seleta de 2021, o próprio Lehman pavoneia as conquistas de sua série poética, lembrando que onze editores convidados se tornaram, depois, Poetas Laureados dos EUA. E, obviamente, não deixa de citar Louise Glück, a Nobel do ano anterior.

*

Após folhear algumas edições, pensei comigo: seria interessante ter uma publicação dessas no Brasil. Seria? Em tese, a resposta é sim, mas na prática um anuário desse tipo não é possível entre nós. Para começo de conversa, diferentemente dos Estados Unidos, não temos a incrível quantidade de revistas de poesia e de publicações não especializadas que também divulgam poesia. A revista The New Yorker, por exemplo, é um semanário de interesse geral que normalmente publica ficção e poesia. Em cada edição o leitor encontra lá pelo menos dois poemas inéditos.

No volume The Best American Poetry 2018 – tomo aqui uma edição a esmo –, os textos foram extraídos de 58 publicações, sendo que 17 delas forneceram mais de um poema. Entre estas destacam-se a Poetry, revista bimestral publicada pela Poetry Foundation, e a já citada The New Yorker. Há ainda outras, como a Southwest Review (de Dallas, Texas); Birmingham Poetry Review (de Birmingham, Alabama, ligada à universidade desse estado); Gulf Coast (de Houston, Texas); The American Poetry Review (de Filadélfia, Pensilvânia); e The Sewanee Review (da University of South em Sewanee, Pensilvânia).

Ao analisar a lista de publicações que trouxeram à luz pela primeira vez os poemas da edição The Best de 2019, constatei um número ainda mais variado de títulos. Há desde revistas diárias online (como Poem-a-day, da Academy of American Poets, e Poetry Daily, publicada em Fairfax, na Virgínia) até antologias como a Freeman’s, na qual cada edição reúne textos de ficção, não ficção e poesia, baseados num tema específico. Mesmo sem conhecer essas revistas, noto que elas têm sedes em diferentes partes dos Estados Unidos. Numa visita aos sites, observa-se ainda que, editadas no epicentro do capitalismo mundial, quase todas elas são publicações comerciais, com anúncios e vendas de assinaturas. Isso vale, inclusive, para os títulos vinculados a universidades ou a entidades culturais. Se a seleção da Best American Poetry baseia-se em universo tão extenso e variado, é bem provável que de fato apresente um bom retrato da melhor poesia surgida durante o ano. Para reforçar essa possibilidade, não se deve esquecer que as publicações originais também fazem suas seleções. Quanto aos resultados comerciais da iniciativa, basta dizer que esse anuário americano é publicado pela editora internacional Simon & Schuster, empresa que certamente não sustentaria, durante mais de três décadas, um periódico deficitário.

Mas retorno: e se tentássemos fazer algo similar no Brasil? De saída, empacaríamos na falta de fontes. Quantas publicações literárias de circulação regular temos no país? Que eu saiba, contam-se nos dedos – e, talvez, lamentavelmente, de uma só mão. Revista de interesse geral que publica poesia, acho que só existe uma — a piauí. Sem recursos, as revistas acadêmicas circulam (quando circulam) de forma muito restrita: ficam dentro das próprias universidades. Além disso, não têm por hábito trazer à luz poemas inéditos. Por fim, os grandes jornais, cada vez mais culturalmente desenxabidos, abandonaram de vez a literatura. Portanto, não há como promover uma seleção de melhores poemas do ano com base em universo tão restrito. Seria como tentar pescar em rio seco.

Até aqui tocamos apenas na casca das impossibilidades. No miolo desse fruto amargo reside algo ainda pior: a minguada existência de leitores. Além do poder de compra, o interesse pela leitura é que constrói o mercado livreiro. Se entre nós sempre foi parca a procura de livros em geral, quem vai se importar com publicações de poesia? Aí está, portanto, o que há de pior na poesia brasileira. O problema não se localiza na poesia em si, mas na falta de divulgação, na escassez de leitores, na insuficiência de meios para a circulação de “livros à mancheia”, como pregava o poeta Castro Alves.


Carlos Machado é jornalista e poeta.

Para saber mais, o site do anuário The Best American Poetry: http://www.bestamericanpoetry.com/

Página do anuário no site da editora Simon & Schuster: https://www.simonandschuster.com/books/The-Best-American-Poetry-2022/David-Lehman/The-Best-American-Poetry-series/9781982186685

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